Onde está…o seu irmão?
(Caim e Abel)
Genesis 4,1-10
A pergunta colocada pelo autor de Genesis 4,9: “onde está … seu irmão” não pode ser considerada exclusivamente mítica e abstrata. Ela, não apenas toca o círculo da primeira família da humanidade (Adão e Eva) como também o seu valor histórico e sobretudo ético persegue o curso da história dos homens. A pergunta vista no contexto do texto, testemunha que o ponto de partida não é um paraíso perdido, mas as relações de força, de luta e de violência de todo tipo. Ela sugere igualmente uma responsabilidade entendida como solidariedade da pessoa com os seus actos. É interessante notar que o começo desta pergunta coincide com a que foi colocada ao Adão em Genesis 3,9: “Onde estás…?”. Simples coincidência ou repetição de palavras? Não é por acaso, os dois textos sugerem uma unidade temática a considerar: existe inevitavelmente uma relação entre o pecado de Caim e o do Adão. Mesmo as respostas que os dois dão seguem a mesma lógica: não assumem a responsabilidade, isto é, não são solidários com os seus próprios actos: a mulher que me deste para ser a minha companheira me deu a fruta, e eu comi (Gn 3,12); por acaso eu sou o guarda do meu irmão? (Gn 4,9). Eis ai a questão da irresponsabilidade.
Por acaso eu sou o guarda do meu irmão? Autojustificação ou irresponsabilidade?
No fundo de si, Caim sabe que suas acções contra seu próximo não foram boas. O que fez não agrada nem a Deus nem a si mesmo. Tirou a vida que somente a Deus pertence. Unicamente Deus pode dar e pedi-la de volta. Portanto, Caim fez o que a si não convém nem compete. É assim que na prática ele não responde a questão fundamental: onde está seu irmão? A resposta de Caim que aparece em forma de pergunta indica claramente a tendência de auto justificação do homem ou da irresponsabilidade entendida como a não solidariedade com os seus próprios actos. Implicitamente, ele diz: “Eu não sou responsável do que aconteceu”. A consciência de Caim pesa sobre si. Ele sabe o que aconteceu com o seu próximo mas não quer assumir os actos. Mais adiante a narrativa não lhe dá razão: por que você fez isso? (Gn 4,10// 3,14). Deus ouviu o grito do sangue do inocente pedindo socorro. É um “porquê” reivindicativo. Caim tirou a vida de um inocente, não podia fazer de outra maneira? Por que matar? Quem és tu?
Caim e Abel: Duas realidades no mundo
A tradição israelita, mesmo a mais primitiva, quer concentrar a essência de uma pessoa no seu nome. “O portador, [dizia G. Von Rad], existe em seu nome e, por conseguinte, o nome contém uma afirmação sobre a essência de seu portador ou, pelo menos, algo de seu próprio poder”.
O texto de Gn 4 põe em evidências dois nomes que merecem toda nossa atenção. Estes dois nomes contêm realidades existenciais pelas quais o mundo partilha. Sabe-se que Caim vem de uma raiz hebraica que significa “possuir”, “adquirir”, “comprar”. Outras possibilidades de leitura associam o nome com o adjectivo “ciumento”, “invejoso”. Portanto o nome designa de um lado, às nossas raízes na perseverança – a – ser o que nós imaginamos possuir através do jogo de forças naturais e instintivas que nos constituem no nosso esforço para ser [cf. M. Faessler]; do outro lado, ele indica o desejo árduo pelas coisas alheias cujo valor provoca em nós o sentimento de inveja, de ciúme. Nesta perspectiva, o nome Caim sugere uma tendência nos humanos que consiste em se considerar mestres de si mesmos doptados de capacidades extra – ordinárias para dominar qualquer que seja situação.
Mas o conteúdo contido no nome Caim não representa o todo do ser humano. Existe também Abel que quer dizer “névoa”, “nevoeiro”. Portanto algo de frágil; de certa forma precária. O frágil, o precário é o que mais necessita de cuidados especiais. A fragilidade, a precaridade são características inerentes à vida humana; é uma parte de nós mesmos. Ignorar esta realidade é sentir-se mestre de si e de tudo; é matar uma parte de si mesmo. É aniquilar a humanidade de si mesmo. O outro homem, frágil que seja, é parte integrante da minha humanidade. Caim matando Abel, se torna um ser desumano, de crueldade extrema. É dentro dessa desumanidade que a pergunta: “onde está… seu irmão”, convida Caim a recuperar a outra parte de si mesmo; um convite a tornar-se humano; a recuperar a sua humanidade, a ser criatura e não mestre de si mesmo e de tudo. O ciúme, inveja e talvez um certo orgulho de se imaginar forte, possuidor de tudo e mestre de si e dos outros cega e torna Caim surdo. Ele não “enxerga” nem “ouve” a realidade revelada na pergunta. Ele não entendeu que era necessário responder a questão sendo solidário para com os seus actos. Uma parte da sua humanidade desapareceu, foi por si aniquilada. Não protegeu a parte que mais precisava da protecção.
Caim e Abel: Duas realidades no mundo
A tradição israelita, mesmo a mais primitiva, quer concentrar a essência de uma pessoa no seu nome. “O portador, [dizia G. Von Rad], existe em seu nome e, por conseguinte, o nome contém uma afirmação sobre a essência de seu portador ou, pelo menos, algo de seu próprio poder”.
O texto de Gn 4 põe em evidências dois nomes que merecem toda nossa atenção. Estes dois nomes contêm realidades existenciais pelas quais o mundo partilha. Sabe-se que Caim vem de uma raiz hebraica que significa “possuir”, “adquirir”, “comprar”. Outras possibilidades de leitura associam o nome com o adjectivo “ciumento”, “invejoso”. Portanto o nome designa de um lado, às nossas raízes na perseverança – a – ser o que nós imaginamos possuir através do jogo de forças naturais e instintivas que nos constituem no nosso esforço para ser [cf. M. Faessler]; do outro lado, ele indica o desejo árduo pelas coisas alheias cujo valor provoca em nós o sentimento de inveja, de ciúme. Nesta perspectiva, o nome Caim sugere uma tendência nos humanos que consiste em se considerar mestres de si mesmos doptados de capacidades extra – ordinárias para dominar qualquer que seja situação.
Mas o conteúdo contido no nome Caim não representa o todo do ser humano. Existe também Abel que quer dizer “névoa”, “nevoeiro”. Portanto algo de frágil; de certa forma precária. O frágil, o precário é o que mais necessita de cuidados especiais. A fragilidade, a precaridade são características inerentes à vida humana; é uma parte de nós mesmos. Ignorar esta realidade é sentir-se mestre de si e de tudo; é matar uma parte de si mesmo. É aniquilar a humanidade de si mesmo. O outro homem, frágil que seja, é parte integrante da minha humanidade. Caim matando Abel, se torna um ser desumano, de crueldade extrema. É dentro dessa desumanidade que a pergunta: “onde está… seu irmão”, convida Caim a recuperar a outra parte de si mesmo; um convite a tornar-se humano; a recuperar a sua humanidade, a ser criatura e não mestre de si mesmo e de tudo. O ciúme, inveja e talvez um certo orgulho de se imaginar forte, possuidor de tudo e mestre de si e dos outros cega e torna Caim surdo. Ele não “enxerga” nem “ouve” a realidade revelada na pergunta. Ele não entendeu que era necessário responder a questão sendo solidário para com os seus actos. Uma parte da sua humanidade desapareceu, foi por si aniquilada. Não protegeu a parte que mais precisava da protecção.
Onde está…seu irmão? Uma pergunta existencial
Hoje, vivemos num mundo de conflitos de todo tipo: guerras, criminalidades, violências, discriminação, pobreza, marginalização, etc. Estas realidades tornam a pergunta do texto mais actual e cada vez mais existencial. Dentro destes conflitos aparece e reaparece a figura de Caim e Abel. Os fortes sempre em vantagem que os fracos. Outro [Abel] aparece a mim, não como sujeito em si, mas como meio que me permite atingir os meus desejos.
A sociedade actual é marcada por esta bipolaridade presente em Caim e Abel. As duas personagens que aparecem no texto representam a humanidade. O mundo é partilhado por estas duas realidades. De um lado, há fortes, ricos, poderosos e do outro lado, os fracos, pobres e frágeis. Houve-se em todo canto o grito dos inocentes, pobres, marginalizados, clamando pela justiça, pela comida, água, terra, habitação, saúde, melhor educação, etc. Encontramo-los nas ruas, nas esquinas, nos transportes públicos, nos mercados, nos hospitais, nas machambas de cultivo, nas terras secas, nas Igrejas e até junto dos depósitos de lixo das cidades. O “meu irmão” encontra-se lá onde a humanidade do outro está ameaçada; lá onde grita o sangue dos inocentes; é lá onde jaze a outra parte da “minha” humanidade.
Como Caim da Bíblia, temos olhos mas não enxergamos e continuamos cegos por causa das nossas posições sociais, nossos desejos e interesses. Porque querermos proteger e conservar algumas posições que nos dão um certo privilégio social e económico, passamo-nos de surdos e cegos. Fechamos os olhos e ouvidos. Quanto a pergunta do texto, respondemos da mesma maneira que Caim: não sou guarda do meu irmão; mesmo se sentindo culpados optamos pela irresponsabilidade: não sou responsável da situação em que ele se encontra…eu não sou quem fez isso… “Ninguém é responsável”. Todos se consideram inocentes. Há uma grande insensibilidade e indiferença face a fragilidade da humanidade do outro.
“Seu irmão” está sendo assassinado algures por si mesmo. Seus actos, ideias, comportamentos, atitudes, gestos ou até o sistema político, económico e religioso implantado e apoiado por si, está matando a sua própria humanidade.
Como fazer para bem-fazer?
O rosto do outro me interpela, dizia o filósofo E. Levinas. O outro homem, o inocente, o fraco, o frágil, o Abel clama pelo socorro. Sem cessar ele grita: não me mate! Ama-me como a ti mesmo. Algures, está o Abel meu irmão gritando desesperadamente: socorro!
O Caim do texto fez alguma coisa: atacou Abel e matou. Não há dúvidas que ele agiu. O texto não critica a passividade e ou inactividade do primeiro, mas sobre o que fez. Porquê esta acção cruel contra um indefeso? Num mundo como este, a indiferença, a passividade, comportamento, atitudes, ideias, sistemas que visam o desaparecimento do outro, tudo isso nos coloca no lugar de Caim. E à medida que tentamos desviar nosso olhar, nosso ouvido como se nada tivéssemos visto e entendido, nos situamos dentro da autojustificação: por acaso eu sou o guarda do meu irmão? Implicitamente, recusamos em reconhecer em nós a humanidade do outro. Fazendo isso, tornamo-nos culpados sem sermos responsáveis da situação em que o outro se encontra. Ao contrário, reconhecer o frágil como parte da humanidade de nós mesmos, é um acto de responsabilidade sem culpabilidade. É exactamente o que Jesus dos evangelhos quis mostrar aos seus interlocutores (Lc 10,25-37). Ajuda-se o necessitado sem que isto implique que o sujeito é o culpado da desgraça do outro.
Onde está…seu irmão? Ele está sempre presente nas ruas, nos transportes colectivos, nos hospitais, nas cadeias, nas artérias da cidade, dentro e fora da Igreja, na tristeza, na miséria. Está por ai ignorado por todos, sem nada para comer nem beber, desempregado, sem teto e passando fome.
Daniel Joaquim